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INDISCIPLINA: O PAPEL DE CADA UM NA ESCOLA

O que é indisciplina?

R: falta de disciplina; desobediência, insubordinação, rebeldia; violação de regras ou ordens.

Exaustiva e desafiadora, a indisciplina representa uma enorme dificuldade para o trabalho dos professores.

A Escola contemporânea passa por movimentos de mudança – internos e externos aos seus muros. Por um lado, cobram-se cada vez mais tarefas da instituição: a) ensino dos conteúdos regulares, temas transversais, cidadania, ética, educação sexual e por aí afora; b) de outro, as condições de exercício da profissão de professor estão cada vez mais difíceis (perda de autoridade, capacitação diferenciada, apelos do novo mundo).

A indisciplina (e falta de atenção) lidera (mais 69%, Ibope)  a lista de queixas dos professores, entre os problemas principais da sala de aula. Só quem sente na pele a questão no cotidiano tem a real dimensão de como o problema é desgastante, levando, muitas vezes, ao desestímulo e abandono da profissão.

É possível mudar essa situação e conseguir uma turma de alunos atenta e motivada?

Sim, é possível. Na maioria das vezes, trata-se de um trabalho de longo prazo, com avanços, recuos e rediscussões permanentes, em que o trabalho em equipe é essencial. Não há receita mágica, mas muitos caminhos a serem trilhados para se chegar lá.

O QUE VOCÊ PODE TRANSFORMAR EM SUA PRÁTICA PEDAGÓGICA PARA DIMINUIR O PROBLEMA DA INDISCIPLINA

Num primeiro momento é preciso entender que a indisciplina é a transgressão de dois tipos de regras. Na prática, separar uma coisa da outra não é fácil. Conflitos nunca vão deixar de existir e sem a ajuda de educadores (colaboração da equipe, dos pais), a criança não aprende o valor das regras. Esperar que tudo se resolva normalmente ou acusar um agente ou outro não é uma saída educadora. 

Aí vão eles:

  1. Regras morais: construídas socialmente com base em princípios que visam o bem comum, ou seja, em princípios éticos. Por exemplo, não xingar (falar mal) e não bater. Não há discussão sobre elas, além de valerem para todas as escolas e em qualquer situação.
  2. Regras convencionais: definidas pelo grupo (professores, alunos, pais, funcionários etc.) com objetivos específicos. Ex: horário, uso do celular, conversa em sala de aula (diálogo sobre o conteúdo não é conversa), etc. São casos em que a questão não pode ser fechada, havendo sempre espaço à negociação. Ela varia de escola para escola ou ainda dentro de uma mesma instituição, conforme o momento que está sendo vivido.

Muitos professores esperam que essa formação moral seja feita 100% pela família. No entanto, mesmo sabendo que ela não pode se furtar desse desempenho, é preciso enxergar o espaço escolar como propício (e adequado) para a vivência de relações interpessoais edificadoras.

As questões ligadas à moral, à ética e à vida em grupo devem ser tratadas como conteúdos de ensino. Portanto, cabe a cada educador buscar esse tipo de conteúdo e adoção dessa prática (a reciprocidade deve existir). Caso contrário, corre-se o risco de permitir que as crianças se tornem adultos egoístas e indisciplinados em qualquer situação, incapazes de dialogar e cooperar. Precisamos jogar luz sobre o currículo oculto dos estudantes, aquele que leva em consideração o sentimento do estudante, seus desejos e sonhos, suas incompreensões (mesmo as do seio familiar) e os conflitos sociais. É complexo? Sim, mas é esse o novo cenário potencialmente gerador de indisciplina.

PROCURAR A CAUSA DA INDISCIPLINA E AGIR SOBRE A CONSEQUÊNCIA, PROCURAR GERAR DISCIPLINA.

         Saber como o ser humano se desenvolve moralmente é essencial para encontrar as raízes da indisciplina.

Antes de entender por que precisam agir corretamente, as crianças pequenas vivem a chamada moral heterônoma (grego “hetero”=“diferente”, e “momos”=“lei”): aceitação de normas que não são nossas; dependência, submissão, obediência. É quando seguem regras à risca, ditadas por terceiros (vindas de fora), sem usar a própria consciência para reelaborá-las de acordo com a situação. Por exemplo: se elas sabem que não se deve derramar água no chão julgam o fato um erro, mesmo no caso de um acidente. Nessa fase, a autoridade consciente é fundamental para o bom andamento e construção das relações. 

Por volta dos nove anos, abre-se espaço para a construção da moral autônoma (interna, cada pessoa tem o livro arbítrio, sua vontade de ser livre), quando o respeito mútuo se sobrepõe à coação. Mas a mudança não é repentina nem mágica. O cientista suíço Jean Piaget (1896-1980) questionava a possibilidade de a criança adquirir essa consciência se todo dever sempre emana de pessoas superiores. Assim, é possível dizer que a autonomia só passa a existir quando as relações entre crianças e adultos (e delas com elas mesmas) são baseadas, desde a fase heterônoma, na cooperação e no entendimento do que é ou não é moralmente aceito e por quê. Sem isso, é natural que, conforme cresçam, mais indisciplinados fiquem os alunos.

COMO CONSTRUIR A DISCIPLINA NO AMBIENTE ESCOLAR?

Em primeiro lugar, ela não é subserviência, submissão, obediência mecânica e acéfala, medo do castigo e de todas as consequências negativas da infração.

Disciplina é autodomínio, ordem interior e exterior, liberdade responsável, condição de realização pessoal e coletiva, “um processo adequado de tornar os discípulos verdadeiramente discípulos”. Ela é “o comportamento humano controlado por decisão própria, à luz de princípios e valores e com vista à realização de princípios, valores, ideias e projetos” (PATRÍCIO, 1999). Isso deixa claro que a rota de combate à indisciplina não passa, como pensam alguns, por uma volta à “rigidez de antigamente” – inflexível, que contava até mesmo com castigos físicos. O professor precisa, sim, de autoridade perante a classe. Mas ela só é conquistada quando ele domina o conteúdo e sabe lançar mão de estratégias eficientes para ensiná-los.

Se não, como bem descreve o psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937), a Educação se reduz ao ato de o aluno transcrever o que está no caderno do professor sem que nada passe pela cabeça de ambos.   “O resultado é o tédio. E gente entediada busca algo mais interessante para fazer, o que muitos confundem com indisciplina. A escola é, sem dúvida, a instituição do conhecimento, mas é preciso deixar espaço para a ação mental da turma”, afirma Luciene.

Olhar para a sala de aula tendo como base essa concepção de indisciplina faz diferença. Os benefícios certamente serão maiores se houver o envolvimento institucional. Por isso, o trabalho exige não apenas autorreflexão mas também formação e esforço de equipe. Para transformar o ambiente, o discurso tem de ser constante e exemplificado por ações de todos.

 Construir a disciplina consiste em:

– Formar o educar e o aluno para a autodisciplina e construir a disciplina para um ensino de qualidade, com responsabilidade;

– Criar ambientes de trabalho e condições organizacionais nas escolas de modo a que se alcancem verdadeiros objetivos educativos;

– Gerir a vida na aula e na escola de modo a desenvolver eficazes ambientes de aprendizagem e que, precisamente por serem ambientes de aprendizagem, também previnem os fenômenos de indisciplina e, quando necessário, possuem meios para corrigi-la e punir.

Nessa linha conceitual e teórica vale a pena refletir, então, em pelo menos mais três conceitos:

– O que é ser aluno (criança/jovem)?

– O que é ser professor?

– O que é a escola?

  • O aluno (enquanto criança/jovem que frequenta a escola) é um ser humano, com poucos anos de vida, mas com trajetos e projetos, com pensamentos e emoções, com opiniões sobre si, sobre os outros e sobre as situações em que vive, e deve ser ouvido. Neste sentido, e contrariando posições tradicionais e conservadoras, o aluno não pode mais ser visto como uma massa informe a moldar às mãos e segundo os planos de um oleiro; pelo contrário, deve ser considerado um agente ativo da sua própria história e do seu destino, um criador de sentidos, um estrategista nas encruzilhadas da vida. 
  • O Professor: outro ser humano, igualmente com idiossincrasias (predisposição particular para reagir de maneira individual a um estímulo externo) e uma história pessoal. Que escolheu a profissão de ensinar e de educar. O seu trabalho exige conhecimentos científicos e técnicos, formação pessoal e uma ética de responsabilidade. Esta ética demanda uma consciência forte da influência das suas ideias, ações e do seu exemplo, numa exigência proporcional ao fato de um professor sempre afetar a eternidade. “Ele nunca saberá onde a sua influência termina” (escritor Henry Adams). 
  • A Escola: instituição onde interagem professores, alunos, colaboradores e pais, cruzando os seus próprios trajetos e projetos, deve ser concebida como um espaço relacional e, por isso, uma organização onde vivem, convivem e trabalham diferentes agentes (cada um com um papel fundamental) em estreita ligação e interdependência entre si e com o meio exterior.

É este caráter relacional, traduzido nas interações entre professores e alunos e entre alunos e alunos (sem desconsiderar as famílias) que empresta à vida na escola uma complexidade e uma especificidade diferente do quotidiano de outras instituições e espaços públicos.

Caracterizam as dinâmicas do espaço escolar: os conflitos de poder, mais ou menos sutis, entre professores e alunos; a concessão ou denegação (contestação; desabonação; negativa) da autoridade estatutária e pessoal por parte dos alunos relativamente aos professores; o efeito das expectativas e o fenômeno das profecias autorrealizadas; o jogo de xadrez das estratégias de sobrevivência praticado por professores e alunos, aprisionados entre mundos com exigências pouco conciliáveis; os juízos de valor acerca do desempenho e das atitudes do “outro”, onipresentes no ambiente escolar, etc.

É na qualidade dessas relações que assentam os dois grandes objetivos da escola:

– Introdução e aprendizagem do patrimônio cultural e científico da humanidade;
– Atuação como espaço de segunda instância de socialização.

Alcançar estes dois objetivos exige, mais do que nunca, que a escola se repense, se reorganize e passe a agir no sentido de construir a disciplina, na acepção que lhe demos acima: educar para a autodisciplina e para a responsabilidade.

LINHAS DE AÇÃO INTERDEPENDENTES NA BUSCA DA DISCIPLINA: AO NÍVEL DA AULA, DA ESCOLA E DA FAMÍLIA:

– A ação ao nível da aula: construir um clima relacional assentado em regras; mas isso não evita que ao mesmo tempo o professor, enquanto líder, esteja aberto à opinião do aluno e à construção de consensos; não evita que às relações presida acima de tudo o valor do respeito mútuo – embora saibamos que nada disso seja fácil. Antes de ensiná-los a saber ler e escrever é preciso ensinar a ser “Gente”. O respeito do professor para com os alunos passa por todo um grande esforço no domínio das atitudes e da qualidade do próprio ensino.

– A ação ao nível da Escola: torna-se necessário a existência de uma liderança “forte” em cada escola. E essa força só o é enquanto tal se estiver aliada a duas capacidades imprescindíveis: a capacidade de implicar toda a população escolar (professores, alunos, auxiliares e funcionários) nos mais diversos pormenores e decisões da vida da comunidade; e a capacidade de atrair e de implicar as famílias num projeto educativo comum. Parece, com efeito, que o grande desafio que se está a colocar à escola para este novo século é, antes de mais, o da gestão da sua vida e das suas dinâmicas interacionais internas. E tudo aponta para a necessidade de que essa gestão seja participada e partilhada por todos os seus membros em ordem ao desenvolvimento da sua democratização interna e “ao reforço do seu papel cívico e comunitário” (BARROSO, 2005, p. 125). Isso significa, entre outros aspectos, que a liderança tem de saber criar diversas e descentralizadas vias de comunicação, valorizar a opinião e a iniciativa de todos, inclusive do aluno. As experiências que vão nesse sentido mostram que em tais condições o aluno se sente respeitado, tem a sensação de que o seu estatuto é valorizado, e adere espontaneamente às normas e valores da escola para cuja definição e esclarecimento também contribuiu (AMADO, 2007).

A ação ao nível da família e da comunidade:  diversos estudos (PRODFORD; BAKER, 1995) revelam que a abertura da escola ao meio produziu efeitos positivos na gestão e nas interações quotidianas na aula, na medida em que se proporcionou maior realismo relativamente ao que havia a exigir, se adquiriu maior conhecimento das limitações, interesses e prioridades da população escolar e se passou a centrar mais o objetivo da ação na realização pessoal do que na competição acadêmica(STOER; SILVA, 2005). Nota-se que é fundamental envolver as famílias constantemente: organizar a ação de equipas de mediadores sociais e culturais que estabeleçam canais de “intercompreensão” no binômio escola-comunidade, fortalecendo a articulação entre a escola e seu meio (HENRIOT-VAN ZANTEN, 1988, BONAFE-SCHMITT, 1997).

Escola: fruto da interação entre professores, dirigentes, equipe de colaboradores, professores, alunos, famílias e todo o meio ambiente local e global.

Referências:
PATRÍCIO, M. Ferreira. A disciplina e a educação para a vida pessoal e em comum. Suplemento de Diário do Sul, n. 8279 de 5 ago. 1999.

MOFFITT, Terrie; CASPI, Avshalom. Como prevenir a continuidade intergeracional do comportamento anti-social. In: FONSECA, A. C. (Org). Comportamento anti-social e família. Uma abordagem científica. Coimbra: Almedina, 2002.

FREIRE, Paulo. A pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

HENRIOT-VAN ZANTEN, Agnes. Les ressources du “local”. Revue Française de Pédagogie, n. 83, pp. 23-30, 1988.

PROUDFORD, Christine; BAKER, Robert. Schools that make a difference: a sociological perspective on effective schooling. British Journal of Sociology of Education, v. 16, n. 3, p. 277-292, 1995.

BARROSO, João. Políticas Educativas e Organização Escolar. Lisboa: Universidade Aberta, 2005.